As tentações do mundo
- Diário Expandido

- 10 de ago.
- 7 min de leitura
Atualizado: 19 de ago.
Por Gustavo Debastiani
No início de todo mês, logo depois de a aposentadoria pingar na conta, Mário pegava os boletos cuidadosamente ordenados na gaveta da cômoda do quarto, calçava suas sandálias de couro e caminhava em direção à lotérica do bairro. O filho, vez ou outra, fazia sermões sobre a praticidade de um tal de a-pê-pê, que, de uma forma que Mário custava a acreditar, conseguiria pagar todas as contas pelo celular, sem sair de casa... Mas claro que aquilo era besteira. Conta se paga na lotérica, com os boletos na mão e a carteira abarrotada de onças e garoupas no bolso. Foi assim a vida toda e seria assim até o fim da vida.
Vida essa muito tranquila, sobretudo agora, na melhor idade, quando o que importa mesmo é a saúde. Seu único tormento eram dois pinos no cotovelo direito, que incomodavam de tempos em tempos, resultado de um acidente de trabalho quando, ainda jovem, caiu de mal jeito durante uma perseguição policial. Mas o vagabundo ficou pior, com certeza; os companheiros de patrulha garantiram que ficasse. No mais, todos os exames estavam em dia, nada de artrite ou problemas intestinais, o sono era regulado, as dores nas costas eram suportáveis, possuía um gordo plano de saúde e tomava os medicamentos para pressão religiosamente após o café da manhã, embora suspeitasse que o que ajudava mesmo era a pequena taça de vinho tinto depois do almoço.
Naquela manhã, uma manhã cinzenta e nublada, Mário agradeceu a Deus antes de sair de casa. As manhãs cinzentas e nubladas eram as mais agradáveis para a caminhada, pois a camisa social listrada não formava pizzas embaixo dos braços e o pé rachado não escorregava na sandália de couro. Assim, ele caminhou sereno, com a respiração controlada e sob passos lentos, mas firmes, os 15 minutos que separavam sua casa da lotérica, acenando para aqueles que conhecia, ignorando aqueles que não gostava, irritando-se com montanhas de pavers que impediam o trajeto em uma porção de calçadas e aproveitando o frescor da manhã de início de abril. A lotérica apareceu logo, na esquina da principal rua do bairro, já com alguns clientes esperando porta afora.
Mário continuou, aproximou-se da enorme fila, e, assim que uma mulher de uns quarenta anos deu passagem, avançou porta adentro. Afinal, a terceira idade tem preferência. Ele olhou de canto de olho para a multidão, voltas e mais voltas em uma pequena sala comercial, e dirigiu-se para a fila do guichê preferencial. Seu filho também já lhe disse que há alguma espécie de pacto entre a terceira idade que os faz aparecer, todos juntos e na mesma hora, nos mais variados lugares em que se demore para ser atendido. Pode ser verdade, mas o filho esqueceu de incluir ao tal pacto, também, as mulheres grávidas; entre ele e o atendente da lotérica, além de um senhor sendo atendido no momento, estavam uma senhora, uma grávida, mais uma senhora e, no fim, um senhor.
De qualquer maneira, Mário tinha tempo.
Ao tomar seu lugar na fila, o homem que aguardava antes dele se virou e o cumprimentou com a cabeça. Não se conheciam, mas aquilo era normal; a terceira idade conversa com a terceira idade. Na realidade, a terceira idade conversa com todos. Não são como os jovens de hoje, que só conversam entre si pelo zap ou nem saem de casa. Ainda dizem que vivemos na melhor das épocas... Bons tempos mesmo eram aqueles das piadas tranquilas, das risadas altas e das conversas cara a cara em um mundo sem frescuras. E Mário, como todo bom idoso, gostava de conversar. Foi assim a vida toda e seria assim até o fim da vida.
— Bom dia — ele disse.
— Bom e frio, ein? — Respondeu o senhor.
— Friozinho, sim. Agora começa a esfriar.
— Eu até gosto, pra falar a verdade.
— Eu também — Mário concordou mais uma vez, com um sorriso pequeno no rosto.
— O chimarrão desce mais quando o frio chega.
O senhor à sua frente também esboçou um sorriso.
— É verdade. Mas o ruim era quando a gente precisava sair cedo pra rancar os inço
do meio da lavoura, nos frio pior que esse.
— Próximo!
— Bah, nem me fale. Os dedo das mão parecia que congelavam.
— Sim — o senhor teve tempo de responder, antes de ser assaltado de repente por
uma tosse característica de um fumante compulsivo.
Na mesma hora, outro integrante da terceira idade entrou na lotérica e se dirigiu para a fila preferencial. Mário não perdeu tempo:
— Não é? — Disse para o recém-chegado. — Os dedo das mão congelavam tudo quando a gente tinha que rancar os inço do meio do fumo no frio.
— Com certeza — o senhor número dois falou. — A gente passava o dia inteiro com as mão embaixo do suvaco pra esquentar os dedo — ele completou e riu alto.
— É mesmo — disse o senhor número um, recuperado da tosse.
— Tempo bom que não volta...
— Mas agora me diga se um desses pia de hoje em dia faria tudo que nós fazia na roça — o senhor número um comentou.
— Capaz — Mário respondeu, indignado. — Nem pra arrancar inço do meio do fumo servem.
— Próximo!
— Agora é só celular e videogame — o senhor número um continuou. — Começam a trabalhar depois dos quinze, e olhe lá.
— Pois é. E nesses celular só tem porcaria — disse o senhor número dois.
— É verdade, só isso que tem — Mário concordou.
— Hoje, por exemplo, eu vi no zap que agora tá na moda os homem usar roupa de mulher — o senhor número dois corou.
— Mas era só o que me faltava.
— Juro por Deus.
— Eu vi alguma coisa disso sim — concordou o senhor número um. — Um menino de saia! O mundo tá perdido.
A atendente do guichê terminou o atendimento da grávida e chamou pelo próximo.
— Não bastasse a gente ter que aguentar homem com homem, agora mais essa —
Mário comentou depois de uns instantes de silêncio entre os três.
— Isso aí é falta de Deus — disse o senhor número um, igualmente desacreditado.
— Com certeza — respondeu o senhor número dois.
— Claro que é — Mário completou. — A igreja tá sempre vazia, mas vai numa
balada pra ver.
— Próximo!
O senhor número um se dirigiu ao guichê.
— Recebi no zap um pastor falando que essas coisa que tão acontecendo nos últimos tempos são provação — confidenciou o senhor número dois para Mário. — Deus logo volta.
— Eu vi também. A gente precisa ter fé que essas tribulações vão passar.
De repente, uma conversa alta tomou parte da lotérica. Os senhores olharam para trás e avistaram dois homens que, entrando na fila comum que avançava vagarosamente, conversavam alto, riam despreocupados e tinham as mãos dadas.
— Falando no diabo — disse o senhor número dois.
— Ainda bem que estou quase saindo...
— Tem que ter fé e paciência. Deus logo volta — repetiu o senhor número dois, agora com um toque de súplica.
— Amém — Mário assentiu.
— Próximo!
Mário disse bom conversar com você para o senhor número dois e, enquanto tirava sua carteira do bolso, os boletos organizados sendo entregues para a atendente por baixo da divisória de vidro, seus pensamentos se voltaram para a neta. Sua neta querida que, com 16 anos, precisaria de muita sabedoria para enfrentar um mundo cheio de pecado. Ainda assim, tão logo tirou as notas necessárias da carteira e passou-as para o outro lado do guichê, Mário tranquilizou a si mesmo; como acertou com o filho, acertaria com a neta. Não tinha com o que se preocupar porque, como o pai, a menina sabia escutar.
No fim das contas, achava que uma conversa para a alertar sobre as tentações do mundo bastaria. Era seu papel. Mas uma conversa breve e direta, pois a menina era inteligente. Sempre foi. Aprenderia de primeira, com certeza. Ele aproveitaria aquele fim de semana, quando a neta dormiria no quarto de visitas da casa do avô junto da amiga inseparável. Aliás, aproveitaria para conversar com a amiga da neta, também; ela tinha aparecido com um pequeno risco na sobrancelha há pouco tempo e, daquilo, Mário não
gostou. Seu filho disse que era algo que virou comum entre os jovens, e ele deixou a coisa pra lá não só porque gosta muito da garota, mas também porque conhece os pais dela. Além do mais, são fases, né? Pelos crescem novamente e até Jesus tinha o cabelo comprido.
E o mais importante: Mário já teria percebido se a garota fosse má influência, tamanha a proximidade das duas. Estavam sempre juntas; estudavam juntas, iam ao shopping juntas, jantavam juntas toda semana, passeavam no parque todo domingo. Qualquer desvio, ele já teria percebido. Sua neta até viajou com a família da amiga para a praia, no fim do ano passado. Sempre, sempre juntas. As duas, inclusive, voltaram da viagem com um anel igual; um símbolo para representar a amizade! Hoje se inventa cada coisa... De qualquer forma, era muito bom saber que a neta tinha alguém tão próxima com quem contar e se distrair, ainda mais nesse mundo de hoje.
Estava certo de que não havia com o que se preocupar. Mesmo assim, era seu papel.
Ele conversaria com as duas, que o ouviriam atentas, claro; isso era outra coisa que as diferenciava da maioria: elas conversavam com ele e, principalmente, o escutavam. Sempre que as recebia em sua casa, os três ficavam até tarde da noite, na mesa da cozinha, ele contando suas histórias e elas rindo com vontade.
Sem celulares e seus pretensiosos a-pê-pês. Como tinha que ser.
Enquanto a atendente lhe devolvia os boletos, agora com os comprovantes de pagamento grampeados no canto superior esquerdo, Mário decidiu que passaria no mercado para comprar refrigerantes e chocolate. Afinal, a modernidade tinha lá seus benefícios e a neta estava crescendo rápido demais; ele a mimaria o máximo possível. Porque amava muito, muito a pequena netinha. Foi assim a vida toda e seria assim até o fim da vida.



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