top of page

Desde 2025, o DE está aberto a todas expressões culturais

Quer publicar no DE? Entre em contato via emial: diarioexpandido25@gmail.com

Buscar

A Wikipédia como reflexo do presente

  • Foto do escritor: Diário Expandido
    Diário Expandido
  • 10 de ago.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 19 de ago.

Por Éric Gabriel Kundlatsch


Tradicionalmente, se divide as fontes históricas em três tipos: as fontes primárias, as mais próximas do evento analisado, e o objeto de estudo das pessoas historiadoras; as fontes secundárias, que discorrem sobre fontes primárias ou outras fontes secundárias, normalmente dentro do contexto acadêmico; e as fontes terciárias, grandes repositórios de fontes secundárias, apresentando suas discussões de forma didática e de fácil compreensão, como enciclopédias e dicionários. Essa divisão, cabe destacar, é apenas didática. Fontes que ora são entendidas como fontes secundárias podem facilmente ser transpostas ao estatuto de fonte secundária a depender da pergunta de pesquisa elaborada pelo investigador.

Por exemplo, uma obra como o livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, primariamente poderia ser entendida exclusivamente como uma fonte secundária, pois se propõe a fazer uma análise de ciência histórica ao analisar inúmeras (e mal referenciadas) fontes primárias. Desta forma, entende-se que a fonte primária seria, por exemplo, livros de batizado do período do segundo reinado, que ao analisar revelam a relação demográfica de determinada comunidade em certo recorte temporal, e que ajudam o historiador – nesse caso Sérgio Buarque de Holanda – a costurar sua narrativa histórica. Entretanto, um indivíduo que objetive descrever a história da historiografia brasileira do começo do século XX encontra na obra Raízes do Brasil um excelente testemunho das ideias e do entendimento histórico dos intelectuais desse tempo. Com isso, a fonte é deslocada de seu estatuto de fonte secundária ao de fonte primária; se torna objeto de estudo histórico em questão.

Ao longo do século XX a História como campo do conhecimento acadêmico viu seu conjunto de objetos possíveis de análise se expandir cada vez mais. Com a escola dos Annales, com a História Cultural e com a Micro-História, tipos documentais antes negligenciados passaram a ser encarados com especial atenção, possibilitando análises fora da tradicional história oficial, e consequentemente permitindo que sujeitos antes invisibilizados fossem incluídos nas narrativas históricas. Perspectivas como a história vista de baixo, a história a contrapelo e os estudos subalternos permitiram que os mais distintos momentos históricos fossem retratados a partir do ponto de vista da população oprimida, e o advento da perspectiva de gênero, raça e classe no vocabulário dos historiadores expandiu ainda mais a compreensão da complexidade das relações entre os indivíduos nas mais diversas sociedades ao longo do tempo.

Com o advento da Internet e sua subsequente expansão nos anos 1990 e 2000, um novo tipo documental se fez presente, e com ele, um novo campo de estudo: a História Digital. As fontes digitais, por sua vez, exigiram uma completa transformação no ofício do historiador, que agora não apenas necessita realizar a tradicional crítica documental, mas deve também criticar os próprios dados que constituem a imagem virtual do documento analisado, além de compreender em maior grau a técnica que garante a reprodução dessa imagem.

Ao avançar das décadas, chegamos a uma realidade em que os meios digitais, ora considerados de extrema relevância governamental – inaugurando a discussão de soberania digital e de dados –, e por vezes referidos como bens públicos digitais, foram privatizados e o poder de decisão sobre o espaço comum da internet se concentra nas mãos de poucos conglomerados empresariais, as chamadas big techs. Nesse contexto, a Wikipédia, plataforma que se propõe a ser uma enciclopédia livre, aberta e colaborativa, representa um ponto de resistência. Há anos o site figura entre os dez mais acessados no Brasil e no mundo, em meio a inúmeros sites proprietários, de acesso pago, com a presença de publicidade ou com questionáveis gestão de dados de usuários. Desta forma, deve-se dar especial atenção aos projetos da Wikimedia Foundation quando analisando a cultura digital de nosso tempo.

Por se tratar de uma enciclopédia, é comum encarar os documentos nela contidos como fontes terciárias. Frequentemente, os historiadores acadêmicos enxergam a Wikipédia com duras críticas devido ao seu ideal de que todos podem ser colaboradores, ignorando o caráter de constante revisão de edições e de suas referências, que permite um grau de confiabilidade da informação elevado, superando até mesmo as mais tradicionais enciclopédias em papel. Quando superada a desconfiança, professores e pesquisadores de história tendem a enxergar na plataforma um espaço importante para difusão da história pública – perspectiva fundamental, que garante uma ampla parceria entre o contexto universitário e a Wikipédia, com inúmeros projetos de divulgação científica por meio da plataforma ao redor do mundo.

Contudo, deve-se ir além do entendimento restrito da Wikipédia como plataforma de difusão do conhecimento histórico. Os documentos nela produzidos colaborativamente são testemunhos da compreensão dos editores que trabalharam neles, e a garantia de acesso a todas as versões históricas de qualquer verbete da plataforma possibilita análises aprofundadas das mudanças de narrativas, das disputas editoriais e das dinâmicas digitais da plataforma.

Em obra intitulada The Iraq War: A Historiography of Wikipedia Changelogs, James Bridle reuniu todas as versões do verbete em inglês sobre a Guerra do Iraque até 2010 – ano da publicação do livro artístico. Desta forma, Bridle chama atenção para o complexo processo de redação de verbetes na Wikipédia, destacando as disputas entre os diferentes pontos de vistas entre os usuários da plataforma.

ree

Única cópia existente do conjunto de 12 volumes da obra.

Disponível em: https://w.wiki/EuBc


Com isso, podemos deslocar os documentos da Wikipédia de seu tradicional estatuto de fonte terciária ao de fonte primária, servindo de valioso objeto de estudo da História do Tempo Presente. As disputas de narrativas existentes na plataforma, apesar de possuírem dinâmicas próprias e especificidades de análise, refletem as diferentes narrativas existentes na imprensa e na sociedade em geral, e a análise dessas mudanças ao decorrer do histórico do verbete nos permite compreender as transformações do entendimento do fenômeno histórico em questão ao decorrer da história.

A Wikipédia testemunha as transformações, disputas e conflitos de nosso próprio presente, resistindo como repositório do conhecimento livre e de acesso aberto em meio a uma era de avanços no processo de privatização da internet.


Um debate mais aprofundado na monografia produzida pelo Eric com o título: Espelho do presente: Perspectivas teórico-metodológicas de uso da Wikipédia como fonte histórica a partir da análise do verbete “Ataques de 8 de janeiro em Brasília”, disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/265988


 
 
 

Comentários


Você pode colaborar pra manter o DE no ar. Pix: diarioexpandido25@gmail.com

© 2025. por Amigos do Diário. Todos os direitos reservados.

  • b-facebook
  • Twitter Round
  • Instagram - Black Circle
bottom of page